quarta-feira, 29 de maio de 2013

Maria Eugênia ou diálogo com meus mortos.


- Joga pedra, Chico!
-Cuidado. Olha o porrete na mão dela!
- Certin, certin! Corre molecada!
 -Meninada tem medo? Precisa ter medo, não. Certin, certin!

 
Maria Eugênia era Professora, Formada, Nomeada...  Certificado com letras maiúsculas, em escrita gótica. Assim se diplomavam as meninas da Escola Normal.
Maria Eugênia era um diamante negro. Certin, certin! Brilhava, assim como seu diploma gótico, afixado no casebre de sapé lá no alto da ladeira do Cavaco.


 
-Nega, inteligente e bonita! – sonhava um. Leva pra casa! - retrucava outro.
-Pra que, se ela pode me dar ali mesmo nas biquinhas?
-Pode? Não seria este, o destino das meninas negras, inteligentes e bonitas?
-Certin, certin! Martelava ela em seu delírio lá pela metade do século passado.

 
Maria Eugênia estudou e aprendeu com a mulher do Juiz.
-Ah! Então a competência é da Senhora Meritíssima, a esposa do Dr Juiz, professora de francês, ora, pois! ...assim ditava a versão autoritária constituída na época.
 
Inteligente, a Maria Eugênia. Ministra suas aulas na escola pública. Ensina a leitura a menino branco! Pode? Num pode! ...matuta a autoridade nas janelas do Paço Municipal.
Francês, ela lia, falava e ensinava. Sabia e até sorria na praça, se entre as meninas da Escola. Desde o tempo da Dona Adelina - a fundadora. Música, cálculo oral? Resolvia dançando o Certin!, com sua saia rodada, entre poemas de Camões. Certin, certin!
 
Aí veio o primeiro surto e depois mais um; -  Certin, certin!  Certin, certin! Certin, certin!

 
Sô Alípio, o pai. Alipitoco? O barba branca. Preto de barba branca?- especulam pelas esquinas. Xiii!  Enorme barba o Alípio tinha. Noel preto, cadê o presente? - interroga um galeguinho com sarcasmo. - Pai preto tem presente não. Deixa só dignidade por herança.
Era assim, assim era, nos meados do século XX.

 Passinho curto. De repente uma corrida.
Cuidado! Oh! Olha porrete na mão dela! 

Prostituta não foi. Preta é puta mesmo! afirmava o da boca pequena nas esquinas da vila.
E veio a revolução, o canhão, a escravidão, a escuridão, a perseguição, a prisão, a internação, a intervenção, a exclusão...
NÃO!

Certin, certin!    Certin… … … certin!         ...            ...            cer...!
Maria Eugênia nunca mais voltou para a escola onde ensinava.

Você dançou Maria Eugênia! Dança Maria Eugênia! Dança assim, certinho.
Conta esta história, assim, pra mim. Sobe a ladeira do Cavaco. Leva sua vida certinha. Ainda lhe ouço, Maria Eugênia. - Certin, certin!

Casa de pau-a-pique, telhado de palha. Água da bica e latrina lá fora... E o francês?
Luz de lamparina, catre de tábua, colchão de palha, fogão a lenha e a fome constante.
- Certin, certin!

Esquizofrenia social de povo colonizado. De onde veio seu francês atávico, Maria Eugênia?
Da mulher do Juiz ou de seus ancestrais bantos no cativeiro? Para que serve seu francês nestes vales onde meninos brancos estropiam o idioma de Camões?

Você já nasceu excluída, Maria Eugênia!
Você espelha mais o Congo. Mas o modelo decretado vem da França.
Dança Maria Eugênia, dança!
 
A música que você escuta por estes vales é o som do legado sinistro da civilização ocidental:
a inquisição, o nazismo, o fascismo, o comunismo, o antissemitismo, o escravismo colonial.

Você estudou, Maria Eugênia!
Aprendeu o “bleu-blanc-rouge” da liberdade, da fraternidade e da igualdade.
Mas tudo já veio contaminado com o sangue dos humanos escravizados, coisificados, mercantilizados, precificados, negociáveis.
A civilização ocidental cristã espalhou-se pelo mundo. Algumas de suas convicções porem são difíceis de compartilhar: matanças e saques, atropelo e a destruição de povos.
Sua sensibilidade é doce, Maria Eugênia! As sinapses de seu cérebro inteligente não suportam os ruídos dos conflitos e das contradições.
 Sua dança reflete os sons do seu Congo ancestral; lá a anarquia e desagregação crônica derivam hoje ainda, em grande parte, da ferocidade da exploração e do genocídio de suas comunidades.

Volta Maria Eugênia!
Volta para a sala de aula. Venha ensinar ao seu povo a dança do Certin. Venha dizer-nos o que está certo ou errado. Diga onde está a esperança se o mundo esta corrompido, a cobiça desenfreada, a voracidade incontestável. O culto do prazer é uma religião praticada. O cristianismo tanto em sua variante católica como protestante, se encolhe e cada vez exerce menos influencia no conjunto das nações. A corrupção cresce como nunca e se infiltra por todas as instituições. O alheamento político, a futilidade, o cinismo, reinam por toda parte. Vida espiritual e valores éticos concernem só a minorias insignificantes.

Volta Maria Eugênia! Ensina-nos a dancinha do certin, certin!

 

Maria Eugênia era professora Um dia surtou e viveu pelas ruas de Rio Preto-MG. . Ensinava matemática e música de graça nas ruas a alunas da Escola. Falava corretamente francês. Em seu delírio repetia insistentemente o mantra: Certin, certin!

Eu a conheci e presto aqui minha reverência

Maria Inês Portugal
Janeiro/2013

 

5 comentários:

  1. Lindo texto. Forte, pungente até.
    Cheio de vida e fúria.
    Tem um ginecologista metido a artista que tem um livro chamado Mulher - O Negro do Mundo. O título cabe melhor aqui.
    Lindo texto de estreia.
    Parabéns Mip.
    Super beijo.
    Mariane
    PS. Peço tua licença para mandar adiante para minha norinha francesa. Não sei o que ela vai conseguir entender mas arrisco que vai gostar muito.

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  2. Brigadin! Brigadin!
    Nós, eu e a Maria Eugênia agradecemos a gentileza de suas palavras.
    com carinho,
    Inês

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  3. Li todos. Você é realmente uma cronista/poeta, ou vice versa! Este é perfeito! Chego a vê-la subindo a ladeira, falando, bailando... Seu texto tem vida!!! É poesia! É pintura! É uma obra de arte! Parabéns, amiga. Vá em frente e vamos publicar! Não podemos deixar seus textos limitados a um público privilegiado. Beijos saudosos,
    Vitória

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  4. Chocante, ticante o texto-relato que me põe ciente dessa figura em Rio Preto do passado remoto, de quem simplesmente não consigo não gostar. Acho que me apaixonei por sua apresentada. Valeu.

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