- Joga pedra, Chico!
-Cuidado. Olha o porrete na
mão dela!
- Certin, certin! Corre molecada!
-Meninada tem medo? Precisa ter
medo, não. Certin, certin!
Maria Eugênia era Professora,
Formada, Nomeada... Certificado com letras maiúsculas, em escrita
gótica. Assim se diplomavam as meninas da Escola Normal.
Maria Eugênia era um diamante negro.
Certin, certin! Brilhava, assim como
seu diploma gótico, afixado no casebre de sapé lá no alto da ladeira do Cavaco.
-Nega, inteligente e bonita! –
sonhava um. Leva pra casa! - retrucava outro.
-Pra que, se ela pode me dar
ali mesmo nas biquinhas?
-Pode? Não seria este, o
destino das meninas negras, inteligentes e bonitas?
-Certin, certin! Martelava ela em seu delírio lá pela metade do
século passado.
Maria Eugênia estudou e aprendeu
com a mulher do Juiz.
-Ah! Então a competência é da Senhora
Meritíssima, a esposa do Dr Juiz, professora de francês, ora, pois! ...assim ditava
a versão autoritária constituída na época.
Inteligente, a Maria Eugênia.
Ministra suas aulas na escola pública. Ensina a leitura a menino branco! Pode? Num pode! ...matuta a autoridade nas
janelas do Paço Municipal.
Francês, ela lia, falava e
ensinava. Sabia e até sorria na praça, se entre as meninas da Escola. Desde o
tempo da Dona Adelina - a fundadora. Música, cálculo oral? Resolvia dançando o Certin!, com sua saia rodada, entre
poemas de Camões. Certin, certin!
Aí veio o primeiro surto e
depois mais um; - Certin, certin! Certin, certin!
Certin, certin!
Sô Alípio, o pai. Alipitoco? O barba branca. Preto de barba branca?- especulam
pelas esquinas. Xiii! Enorme barba o
Alípio tinha. Noel preto, cadê o presente?
- interroga um galeguinho com sarcasmo. - Pai
preto tem presente não. Deixa só dignidade por herança.
Era assim, assim era, nos
meados do século XX.
Cuidado! Oh! Olha porrete na
mão dela!
Prostituta não foi. Preta é puta mesmo! afirmava o da boca
pequena nas esquinas da vila.
E veio a revolução, o canhão, a
escravidão, a escuridão, a perseguição, a prisão, a internação, a intervenção, a
exclusão...
NÃO!
Certin, certin! Certin… … … certin! ... ... cer...!
Maria Eugênia nunca mais
voltou para a escola onde ensinava.
Você dançou Maria Eugênia!
Dança Maria Eugênia! Dança assim, certinho.
Conta esta história, assim,
pra mim. Sobe a ladeira do Cavaco. Leva sua vida certinha. Ainda lhe ouço,
Maria Eugênia. - Certin, certin!
Casa de pau-a-pique, telhado
de palha. Água da bica e latrina lá fora... E o francês?
Luz de lamparina, catre de
tábua, colchão de palha, fogão a lenha e a fome constante.
- Certin, certin!
Esquizofrenia social de povo
colonizado. De onde veio seu francês atávico, Maria Eugênia?
Da mulher do Juiz ou de seus
ancestrais bantos no cativeiro? Para que serve seu francês nestes vales onde
meninos brancos estropiam o idioma de Camões?
Você já nasceu excluída, Maria
Eugênia!
Você espelha mais o Congo. Mas
o modelo decretado vem da França.
Dança Maria Eugênia, dança!
A música que você escuta por
estes vales é o som do legado sinistro da civilização ocidental:
a inquisição, o nazismo, o
fascismo, o comunismo, o antissemitismo, o escravismo colonial.
Você estudou, Maria Eugênia!
Aprendeu o “bleu-blanc-rouge” da
liberdade, da fraternidade e da igualdade.
Mas tudo já veio contaminado
com o sangue dos humanos escravizados, coisificados, mercantilizados,
precificados, negociáveis.
A civilização ocidental cristã
espalhou-se pelo mundo. Algumas de suas convicções porem são difíceis de
compartilhar: matanças e saques, atropelo e a destruição de povos.
Sua sensibilidade é doce,
Maria Eugênia! As sinapses de seu cérebro inteligente não suportam os ruídos
dos conflitos e das contradições.
Sua dança reflete os sons do seu Congo
ancestral; lá a anarquia e desagregação crônica derivam hoje ainda, em grande
parte, da ferocidade da exploração e do genocídio de suas comunidades.
Volta Maria Eugênia!
Volta para a sala de aula.
Venha ensinar ao seu povo a dança do Certin.
Venha dizer-nos o que está certo ou errado. Diga onde está a esperança se o
mundo esta corrompido, a cobiça desenfreada, a voracidade incontestável. O
culto do prazer é uma religião praticada. O cristianismo tanto em sua variante
católica como protestante, se encolhe e cada vez exerce menos influencia no
conjunto das nações. A corrupção cresce como nunca e se infiltra por todas as
instituições. O alheamento político, a futilidade, o cinismo, reinam por toda parte.
Vida espiritual e valores éticos concernem só a minorias insignificantes.
Volta Maria Eugênia! Ensina-nos
a dancinha do certin, certin!
Maria
Eugênia era professora Um dia surtou e viveu pelas ruas de Rio Preto-MG.
. Ensinava matemática e música de graça nas ruas
a alunas da Escola. Falava corretamente francês. Em seu delírio repetia
insistentemente o mantra: Certin, certin!
Eu
a conheci e presto aqui minha reverência
Maria Inês Portugal
Janeiro/2013
Lindo texto. Forte, pungente até.
ResponderExcluirCheio de vida e fúria.
Tem um ginecologista metido a artista que tem um livro chamado Mulher - O Negro do Mundo. O título cabe melhor aqui.
Lindo texto de estreia.
Parabéns Mip.
Super beijo.
Mariane
PS. Peço tua licença para mandar adiante para minha norinha francesa. Não sei o que ela vai conseguir entender mas arrisco que vai gostar muito.
Brigadin! Brigadin!
ResponderExcluirNós, eu e a Maria Eugênia agradecemos a gentileza de suas palavras.
com carinho,
Inês
Aprendi!
ResponderExcluirCertin, certin... ... !
Li todos. Você é realmente uma cronista/poeta, ou vice versa! Este é perfeito! Chego a vê-la subindo a ladeira, falando, bailando... Seu texto tem vida!!! É poesia! É pintura! É uma obra de arte! Parabéns, amiga. Vá em frente e vamos publicar! Não podemos deixar seus textos limitados a um público privilegiado. Beijos saudosos,
ResponderExcluirVitória
Chocante, ticante o texto-relato que me põe ciente dessa figura em Rio Preto do passado remoto, de quem simplesmente não consigo não gostar. Acho que me apaixonei por sua apresentada. Valeu.
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