Eu sempre tive uma relação de medo diante do rio Preto. A aparente
tranquilidade das águas turvas, a delicadeza dos ruídos das águas lambendo as
margens nunca me esconderam inimagináveis ameaças forjadas na infância,
habitantes das profundezas do velho rio.
A periodicidade de sua enchente e a frequência de afogamentos
assombrava-me. Hermínio, o casal de namorados – tantos foram os meus amigos que
desapareceram na aparente candura daquelas águas. Em minha família o medo do
rio é constante: cresci vendo meu avô debulhando o Rosário na esperança que
Nossa Senhora intercedesse no movimento das águas invadindo seu quintal,
ameaçando sua casa e sua família.
O tempo passou. O milênio mudou, a tecnologia avançou, mas ainda hoje, em
momentos de enchente lá se vê Sô
Rodney, meu tio, desenvolvendo cálculos matemáticos e relações físicas e
geológicas para determinar o momento em que a água invadirá ou não sua
residência... o mesmo casarão, pelas mesmas enchentes. Sua angústia mobiliza-o
a calcular o tempo necessário para retirar os móveis.
Simbólico. Desde os tempos primitivos as águas tranquilas ou revoltas
exercem uma atração irresistível sobre a humanidade. É fonte de vida, purifica,
regenera. As águas dos rios geram
conflitos e soluções, guerra e paz, nações e civilizações; definem parâmetros
pelo mundo e na minha aldeia também.
Já disseram que o rio serve para lavar a alma das gentes. Eu diria antes
que está no DNA do ajuntamento de um povo.
Foi nas areias dos leitos de rios que o brilho do ouro cegou a inocência
de destinos e determinou a vida e morte dos faiscadores. Foi alimento, caminho e fonte de prazer para
os formadores da aldeia inicial. Nutriu e fertilizou suas margens permitindo a
produção e a reprodução. O rio é um pai: o calmo provedor da vida ao seu redor.
Um dia bombardearam a minha aldeia. Nas tardes quentes, naqueles céus só
voavam pássaros e nuvens. Sempre foi assim, até que aquele senhor com seu
chapéu de feltro, terno preto e relógio de pulso inventou o avião e ficou
famoso. Daí em diante o céu ficou cheio de máquinas e até de bombardeiros.
A velha cidade seguia sua vida tranquila. Pachorrenta, sempre foi um
ponto de união entre dois estados: Rio de Janeiro e Minas Gerais. Nem sabia da
revolução que estava em curso. O mundo conhecido não ultrapassava os limites do
vale. A velocidade da vida cotidiana seguia o ritmo do fluir das águas do rio
ou do som do passo a passo, dos burros-cargueiros a trotear no paralelepípedo
da rua.
De repente: duas bombas. Foi assim que anunciaram ao povo da minha cidade
que havia uma revolução em mil novecentos e trinta e que mineiros e paulistas
teriam, pelo bem ou pelo mal, que apear do poder em favor do gaúcho da
fronteira – Getúlio Vargas.
De repente jogaram as bombas. Foi assim! Depois, o susto. Depois, a fuga,
as rezas e o medo. Não deu nem para ver a máquina voando e despejando bombas.
Uma delas acertou a muralha de pedras do Cemitério dos Passos. Secular
aquela muralha... Fora construída por escravos e custara muito sangue negro.
Cercava um retângulo abençoado, destino final de todos nós. A Irmandade estabelecera assim, desde a
infância do povoado, ainda nos tempos setecentistas. Naquele local, protegido
por aquela muralha se guardaria a eternidade.
A outra bomba mergulhou no rio espalhando água para todos os lados. O
leito arenoso absorveu o choque, envolveu rapidamente o artefato em carícias e
ela dormiu para sempre, preservando a vida e o povo do lugar. Só um moleque
dormitava na margem com sua vara de pescador. Peixe estava difícil ali na Boca
da Barra. O moleque Narciso acordou com o susto. Ensopado com o banho
inesperado correu a procura de ajuda. Caiu resfolegante diante da Alfaiataria.
Atordoado comunicou o ocorrido ao patrão. Grande moleque, este Narciso. Foi sob
orientação dele, que outros moleques mais tarde, mergulharam no local,
reviraram as areias preciosas e recuperaram a bomba.
Um dia, o velho alfaiate me deu a bomba e a história.
Ela era destinada a destruir a ponte, ponto de união entre os dois
estados. Felizmente a tecnologia aeronáutica era primitiva e o piloto ruim de
mira. O contraditório e que me faz refletir é que justamente um dos mais
sofisticados avanços tecnológicos do século XX – o avião bombardeia minha aldeia justamente em sua
riqueza simbólica: o rio da purificação e o campo santo da eternidade. Que faz
esta modernidade com nossos símbolos?
Se alguém quer por curiosidade, confirmar esta história vá visitar a Biblioteca
Pública e Museu Regional – antiga Cadeia. Ela, a bomba destinada a destruir o
ponto de união entre Minas e Rio, despejada sobre nós pela moderna aviação
brasileira virou peça do museu. Paradoxalmente, dorme para sempre atrás das
grades, numa cela da velha cadeia.
A cidade? Bom, esta continua ao ritmo da pré-modernidade, acompanhando o
fluxo de seu plácido rio, sob o mormaço de suas históricas tardes quentes.
Afinal...
“Em teu seio se vive contente
Para
amar este grande Brasil”
Inês Portugal
Lindo!!!
ResponderExcluirAh, sou a primeira a fazer um comentário, que honra!
ResponderExcluirAdorei o texto da bomba, eu já conhecia a história, mas a pérola da ostra é como contá-la.
É isso aí amiga, vai em frente que vc leva jeito.
E o melhor é que não é realismo fantástico. É tudo verdade...
Bj
sonia
Muito bom!
ResponderExcluirMIP, que bom te ver,que bom te ler e riopretano ser.
ResponderExcluirQue belíssima história. Mas me assustou.Serei o único dos nascidos na fronteira que não conhece este fato? Estarei na idade dos esquecimentos? Nada disso importa.
A beleza desta história começa na mitologia,com Narciso mirando a sua imagem nas águas de nosso rio.Embora este Narciso não seja filho de Cefiso o deus do rio.(ou seria?)Naquela época havia peixes no rio Preto.Naquele momento talvez o instinto animal os tivessem afastados por previsão de uma catástrofe,igual aos elefantes do Tsunâmi.
Mas um fato deste merecia muitas festas.Deveríamos ter um monumento à bomba.Em São Paulo se comemora a revolução constitucionalista até hoje,não foi a da nossa bomba mas esta também foi uma histórica revolução
No Ginasio deveríamos ter estudado muito sobre a bomba.
A D.Doly nos ensinaria fazer as perspectivas da bomba e suas sombras.A D.Sylvia de Lima nos ensinaria a fazer, em trabalhos manuais, uma bomba em cartolina.Solfejaríamos uma Ode a bomba sob a batuta da D.Rosa Barbosa. La pompe n'est pas français diria a D.Aída. O professor Trogo dissecaria os animais e a fábula de Aesopus “Columba et Aqüila.(tradução aproximada A Bomba e a água .)O professor Vitorino nos mandaria analisar o poema de Carlos Drummond De Andrade “ A Bomba".O professor Dinho nos mostraria a matemática da bomba e não a bomba em matemática.A cantina Sr João Bem Bem era a única atualizada com o fato pois sempre tinha bomba de chocolate a venda.
MIP obrigado por esta aula.Quando for a RP entrarei naquele prédio que sempre me assustou na infância mas que hoje se tornou um museu –biblioteca.
sergio negri
Eita! Serginho, que bom que esta bomba te fez saltar do fundo do rio do esquecimento.Que bom, que meu Narciso não se distraiu com a beleza de sua própria face e expôs os mestres que nos forjaram.
ExcluirVocê me emocionou profundamente.
Genial.
ResponderExcluirQue Narciso mais simpático este, que se presta a mergulhar atrás da bomba e não de sua imagem.
Adorei o texto.
E sou obrigada a dizer que adorei também o comentário do teu amigo. Boa idade de esquecimentos que lembra todos os professores.
Trés bon!!!!
Bisous.
A cada dia um aprendizado novo, como a história pode ser emocionante.
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