quinta-feira, 30 de maio de 2013

O dia em que minha aldeia foi bombardeada


Eu sempre tive uma relação de medo diante do rio Preto. A aparente tranquilidade das águas turvas, a delicadeza dos ruídos das águas lambendo as margens nunca me esconderam inimagináveis ameaças forjadas na infância, habitantes das profundezas do velho rio.

A periodicidade de sua enchente e a frequência de afogamentos assombrava-me. Hermínio, o casal de namorados – tantos foram os meus amigos que desapareceram na aparente candura daquelas águas. Em minha família o medo do rio é constante: cresci vendo meu avô debulhando o Rosário na esperança que Nossa Senhora intercedesse no movimento das águas invadindo seu quintal, ameaçando sua casa e sua família.
 
O tempo passou. O milênio mudou, a tecnologia avançou, mas ainda hoje, em momentos de enchente lá se vê Rodney, meu tio, desenvolvendo cálculos matemáticos e relações físicas e geológicas para determinar o momento em que a água invadirá ou não sua residência... o mesmo casarão, pelas mesmas enchentes. Sua angústia mobiliza-o a calcular o tempo necessário para retirar os móveis.

Simbólico. Desde os tempos primitivos as águas tranquilas ou revoltas exercem uma atração irresistível sobre a humanidade. É fonte de vida, purifica, regenera.  As águas dos rios geram conflitos e soluções, guerra e paz, nações e civilizações; definem parâmetros pelo mundo e na minha aldeia também.

Já disseram que o rio serve para lavar a alma das gentes. Eu diria antes que está no DNA do ajuntamento de um povo.  Foi nas areias dos leitos de rios que o brilho do ouro cegou a inocência de destinos e determinou a vida e morte dos faiscadores.  Foi alimento, caminho e fonte de prazer para os formadores da aldeia inicial. Nutriu e fertilizou suas margens permitindo a produção e a reprodução. O rio é um pai: o calmo provedor da vida ao seu redor.

Um dia bombardearam a minha aldeia. Nas tardes quentes, naqueles céus só voavam pássaros e nuvens. Sempre foi assim, até que aquele senhor com seu chapéu de feltro, terno preto e relógio de pulso inventou o avião e ficou famoso. Daí em diante o céu ficou cheio de máquinas e até de bombardeiros.

A velha cidade seguia sua vida tranquila. Pachorrenta, sempre foi um ponto de união entre dois estados: Rio de Janeiro e Minas Gerais. Nem sabia da revolução que estava em curso. O mundo conhecido não ultrapassava os limites do vale. A velocidade da vida cotidiana seguia o ritmo do fluir das águas do rio ou do som do passo a passo, dos burros-cargueiros a trotear no paralelepípedo da rua.

De repente: duas bombas. Foi assim que anunciaram ao povo da minha cidade que havia uma revolução em mil novecentos e trinta e que mineiros e paulistas teriam, pelo bem ou pelo mal, que apear do poder em favor do gaúcho da fronteira – Getúlio Vargas.

De repente jogaram as bombas. Foi assim! Depois, o susto. Depois, a fuga, as rezas e o medo. Não deu nem para ver a máquina voando e despejando bombas.

Uma delas acertou a muralha de pedras do Cemitério dos Passos. Secular aquela muralha... Fora construída por escravos e custara muito sangue negro. Cercava um retângulo abençoado, destino final de todos nós.  A Irmandade estabelecera assim, desde a infância do povoado, ainda nos tempos setecentistas. Naquele local, protegido por aquela muralha se guardaria a eternidade.

A outra bomba mergulhou no rio espalhando água para todos os lados. O leito arenoso absorveu o choque, envolveu rapidamente o artefato em carícias e ela dormiu para sempre, preservando a vida e o povo do lugar. Só um moleque dormitava na margem com sua vara de pescador. Peixe estava difícil ali na Boca da Barra. O moleque Narciso acordou com o susto. Ensopado com o banho inesperado correu a procura de ajuda. Caiu resfolegante diante da Alfaiataria. Atordoado comunicou o ocorrido ao patrão. Grande moleque, este Narciso. Foi sob orientação dele, que outros moleques mais tarde, mergulharam no local, reviraram as areias preciosas e recuperaram a bomba.

Um dia, o velho alfaiate me deu a bomba e a história.

Ela era destinada a destruir a ponte, ponto de união entre os dois estados. Felizmente a tecnologia aeronáutica era primitiva e o piloto ruim de mira. O contraditório e que me faz refletir é que justamente um dos mais sofisticados avanços tecnológicos do século XX – o avião  bombardeia minha aldeia justamente em sua riqueza simbólica: o rio da purificação e o campo santo da eternidade. Que faz esta modernidade com nossos símbolos?

Se alguém quer por curiosidade, confirmar esta história vá visitar a Biblioteca Pública e Museu Regional – antiga Cadeia. Ela, a bomba destinada a destruir o ponto de união entre Minas e Rio, despejada sobre nós pela moderna aviação brasileira virou peça do museu. Paradoxalmente, dorme para sempre atrás das grades, numa cela da velha cadeia.

A cidade? Bom, esta continua ao ritmo da pré-modernidade, acompanhando o fluxo de seu plácido rio, sob o mormaço de suas históricas tardes quentes.

Afinal...                   “Em teu seio se vive contente
                                               Para amar este grande Brasil”

 

Inês Portugal

7 comentários:

  1. Ah, sou a primeira a fazer um comentário, que honra!
    Adorei o texto da bomba, eu já conhecia a história, mas a pérola da ostra é como contá-la.
    É isso aí amiga, vai em frente que vc leva jeito.
    E o melhor é que não é realismo fantástico. É tudo verdade...
    Bj
    sonia

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  2. MIP, que bom te ver,que bom te ler e riopretano ser.
    Que belíssima história. Mas me assustou.Serei o único dos nascidos na fronteira que não conhece este fato? Estarei na idade dos esquecimentos? Nada disso importa.
    A beleza desta história começa na mitologia,com Narciso mirando a sua imagem nas águas de nosso rio.Embora este Narciso não seja filho de Cefiso o deus do rio.(ou seria?)Naquela época havia peixes no rio Preto.Naquele momento talvez o instinto animal os tivessem afastados por previsão de uma catástrofe,igual aos elefantes do Tsunâmi.
    Mas um fato deste merecia muitas festas.Deveríamos ter um monumento à bomba.Em São Paulo se comemora a revolução constitucionalista até hoje,não foi a da nossa bomba mas esta também foi uma histórica revolução
    No Ginasio deveríamos ter estudado muito sobre a bomba.
    A D.Doly nos ensinaria fazer as perspectivas da bomba e suas sombras.A D.Sylvia de Lima nos ensinaria a fazer, em trabalhos manuais, uma bomba em cartolina.Solfejaríamos uma Ode a bomba sob a batuta da D.Rosa Barbosa. La pompe n'est pas français diria a D.Aída. O professor Trogo dissecaria os animais e a fábula de Aesopus “Columba et Aqüila.(tradução aproximada A Bomba e a água .)O professor Vitorino nos mandaria analisar o poema de Carlos Drummond De Andrade “ A Bomba".O professor Dinho nos mostraria a matemática da bomba e não a bomba em matemática.A cantina Sr João Bem Bem era a única atualizada com o fato pois sempre tinha bomba de chocolate a venda.
    MIP obrigado por esta aula.Quando for a RP entrarei naquele prédio que sempre me assustou na infância mas que hoje se tornou um museu –biblioteca.

    sergio negri

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    1. Eita! Serginho, que bom que esta bomba te fez saltar do fundo do rio do esquecimento.Que bom, que meu Narciso não se distraiu com a beleza de sua própria face e expôs os mestres que nos forjaram.
      Você me emocionou profundamente.

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  3. Genial.
    Que Narciso mais simpático este, que se presta a mergulhar atrás da bomba e não de sua imagem.
    Adorei o texto.
    E sou obrigada a dizer que adorei também o comentário do teu amigo. Boa idade de esquecimentos que lembra todos os professores.
    Trés bon!!!!
    Bisous.

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  4. A cada dia um aprendizado novo, como a história pode ser emocionante.

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