sábado, 22 de junho de 2013


 

"Meu corpo me pertence e não é fonte de honra para ninguém."



Amina- 18 anos.

 

A lei do casamento para todos está incendiando a pátria dos Bleu-blanc-rouge. O país dividiu-se em dois e todos querem fazer valer seus pontos de vista. Filósofos e cientistas chegam a prognosticar uma nova Revolução Francesa para próximo. Enquanto as Femen continuam ameaçando o equilíbrio do mundo masculino, a jovem tunisina Amina é presa, por expor seus seios no Facebook com a frase: "Meu corpo me pertence e não é fonte de honra para ninguém." Perto dali, o Festival de Cinema de Cannes premia amores homossexuais. Enquanto o incêndio se espalha, leio um artigo que me revigorou também em mim, a reflexão sobre este assunto.

Foi a notícia da morte de uma religiosa belga chamada Marcella Pattyn, aos 92 anos de idade.  Eu a conheci, quando lá vivi e estudei. Mas... E quem era essa mulher? Porque a mídia internacional fez questão de dar tanta atenção à morte de uma senhora solitária, de 92 aos de idade, residente em Kortrijk – sul da Bélgica?

Marcella foi a última representante, ao menos na Bélgica, de uma das experiências mais originais e conflituosas de vida feminina da história ocidental e cristã – Foi a última beguina.

O movimento das beguinas surgiu numa época de superpopulação feminina na Europa. É! Parece curioso. Mas as sucessivas e sanguinárias guerras acabavam com o equilíbrio entre o masculino e o feminino. Os conventos femininos andavam atulhados e não mais representavam alternativa aos casamentos.

Nascia a Idade Média. O caos resultante do esfacelamento do Império Romano marcava a vida cotidiana. A Igreja, herdeira dos poderes romanos ainda ensaiava seus métodos na imposição de regras de comportamento humano.

Algumas mulheres cristãs, contemplativas e ativas começaram a se organizar solitária e solidariamente. Dedicavam suas vidas a defesa dos desamparados - doentes, mulheres, crianças e velhos. Organizavam ajuda aos hospitais e leprosários. Eram professoras para crianças abandonadas. Algumas se dedicaram a uma brilhante atividade intelectual. Provinham de qualquer estamento social. Em sua maioria praticavam alguma forma de arte seja música, pintura, literatura dentre outras manifestações da época. Foram mesmo precursoras no uso das línguas populares em lugar do latim em suas obras poéticas.

Mas, para meu espanto, trabalhavam para manterem-se livres, independentes da hierarquia eclesiástica ou da proteção de maridos. Cultivavam princípios libertários, inclusive para deixar a organização para casar, se este fosse o desejo. Conheceram sucesso econômico o que despertou a cobiça das instituições masculinas como a Igreja.

As beguinas viviam em coletividades, construindo verdadeiros enclaves urbanos, estabelecendo uma vida livre, de certa forma democrática e trabalhando para obter seu próprio alimento. Estes enclaves foram denominados Béguinage (se construídos em área de fala francesa) ou Begijnhof (se em região de idioma flamengo ou neerlandês). Segundo historiadores, o primeiro BÉGUINAGE foi construído em Liège- Bélgica em 1180.

Aos poucos, os “Béguinage” vão se tornando um espaço diferenciado. Um lugar ao mesmo tempo contemplativo e prático. Onde não vigorava a diferença que a igreja impunha entre a oração e ação. Um espaço que não era só doméstico, nem só clausural, nem heterossexual. Nestes espaços, as mulheres compartilhavam suas tragédias e seus talentos. E mais: compartilhavam com a realidade social que as envolviam, na qual e sobre a qual atuavam. Nestes espaços se diluíram as regras hierarquizadas estabelecidas entre o público e o privado herdados de um velho Império decadente.

 Vivenciaram dois séculos de grande expansão até que denúncias de heresias interromperam o processo. Parece que a intervenção da Igreja se deu em função das polpudas doações que elas recebiam pelos trabalhos. As acusações foram diversas pelos séculos que se seguiram. Elas pagaram caro pelas liberdades conquistadas tanto econômicas, quanto social, quanto religiosa. Uma delas Marguerite Porete foi queimada viva em 1310. Acusavam-nas de aturdir os monges, de provocar escândalos quando buscavam a confissão nos mosteiros próximos, acusavam-nas de bruxas e\ou mulheres livres. E assim como o movimento das beguinas seduziu as mulheres, inquietou os homens. Como aquelas mulheres iriam existir, se não eram nem monjas, nem esposas, ou seja, eram livres da dominação masculina?

Algumas destas construções -”Béginages” ainda sobrevivem na Bélgica e na Holanda. Assim destaco o Groot Begijnhof de Kortrijk, onde faleceu a última delas – Marcella Pattyn e o Groot Begijnhof de Leuven onde eu também vivi, depois que as casinhas foram restauradas, transformadas em residências para estudantes – pesquisadores da KUL - Katholieke Universitiet Leuven. Foram tombadas como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1998. Bruges e Gant, Diest e Amsterdam ainda guardam estas preciosidades.

Claro que finalmente, depois de um período de grande perseguição do século XIV as beguinas foram submetidas ao controle eclesiástico e adaptaram suas regras até morrer em silêncio como Marcella Pattyn .

É uma história apaixonante e pouco conhecida entre nós. É isso mesmo. A História, como outras áreas do conhecimento, habitualmente peca por resgatar os fenômenos humanos exclusivamente do ponto de vista dos vencedores.

A riqueza desta experiência, contudo está nas questões que nos instigam. A contemporaneidade da reflexão até assusta. Vivemos hoje beirando o caos, com profundas mudanças anunciando-se. Será que a inteligência e a criatividade femininas terão seus espaços garantidos neste horizonte?  É muito curioso percebermos como a ideia da subserviência feminina, tão comum, perde seu fundamento conforme retrocedemos no tempo. Nos primeiros anos da Idade Média, antes que a Igreja e as instituições recuperassem e monopolizassem as esferas de poder, a "falta de controle" possibilitava certas liberdades que séculos depois foram reprimidas.  A Reforma e a Contra Reforma, com seus programas dogmáticos de férreo controle social, contribuíram para assegurar um régime de domínio masculino que ainda hoje se mantem.

Isso não significa que os primeiros séculos da Idade Média foram um paraíso para as mulheres, mas sem dúvida observamos que existiu uma liberdade de movimentos muito significativa. Quantas outras especulações são possíveis?

 Paradoxalmente foi o dogma imposto durante a Modernidade que submeteu as simbólicas comunidades das beguinas. E se estas repressões proveem principalmente das instituições religiosas, o certo é que os movimentos culturais como o humanismo e o Iluminismo reforçaram os esquemas. O liberalismo, eventualmente apresentado como um grande passo emancipador do ser humano demorou anos para levar em consideração o papel da mulher na sociedade.

Creio que a história das beguinas seja apaixonante, mas não convém idealizar: A população feminina era mais numerosa que a masculina, mas em vez de recorrer a soluções tipo poligamia, como em algumas regiões, a exemplo do Paraguai massacrado pela Guerra da Tríplice Aliança, recorreu-se a solução - beguinas. Provavelmente a maioria das mulheres teria preferido viver com parceiros e que a opção solitária fosse um ultimo recurso.

"Meu corpo me pertence e não é fonte de honra para ninguém."

Quantas Marguerite – Amina - beguinas serão ainda incendiadas para que esta frase tenha conteúdo ?

 

Maria Inês Portugal

Junho de 2013

6 comentários:

  1. Ainda amordaçam, dominam , humilham e cortam as cabeças que se levantam acima da multidão. Ainda...

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    1. ...ainda temos tempo de gritar e construir as pontes libertárias.
      Obrigada, Alda pela leitura e comentário.
      Inês

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  2. E logo na patria de Asterix onde ele e Obelix se davam tão bem.

    Interessante tambem que na eutanasia os franceses reconhecem as pessoas lúcidas como dona de seu corpo e permitem a eutanásia. Só no amor de iguais,que no fundo são diferentes os franceses se assustaram.
    E o país não é quadrado é octogonal.

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  3. Querida Mip, li esse texto três vezes. É de uma escrita muito bonita, sincera e, claro, com informações preciosas. Fiquei um pouco incomodada com a parte que diz "provavelmente a maioria das mulheres teria preferido viver com parceiros e que a opção solitária fosse um último recurso". Talvez por um pensamento de que as mulheres não precisam de um parceiro, talvez por um determinado discurso - exagerado - de parte do movimento LGBT, que acaba não vendo que realmente muitas mulheres gostam de estar com um parceiro... Bobeira minha!
    Te achei exata ao colocar "meu corpo me pertence e não é fonte de honra para ninguém" em diferentes momentos do texto!
    Beijos!
    Dafne

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    1. Dafne,
      Vamos por partes...
      o título é uma afirmação da Amina, que eu apropriei sem pedir licença.
      parceria,solidão,maioria, minoria,o feminino e o masculino, são temas para muitas vidas!
      Obrigada pela leitura.
      Abraços,Inês

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  4. Mip,
    Que belo texto. Muito interessante. Numa provocação austera e suave ao mesmo tempo.
    Gostei muito de tudo até aqui. Sabia absolutamente nada das Beguinas e me parece um jardim pleno de histórias a se contar, ouvir e refletir.
    Obrigadíssima pelo convite. Gostei imenso.
    Vou-me a maio agora.
    Grande beijo.

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