O Menino do Chapéu
Maria Inês Portugal
Todo dia ele ficava ali.
Gostava de ver o subir e o descer das gentes pela rua. A quem passava ele cumprimentava esbanjando felicidade “B’a tarde, D Doralice!” “Bença, Sô Dá”. Assim era com o homem do pão, com as crianças da escola, com o povo da missa e as enfermeiras do hospital. O menino arrancava brincadeiras até dos soldados do quartel. Eles passavam e davam sinais de uma vida feliz. O menino sempre sorria e cumprimentava a todos. Divertia-se até com os burros de carga que passavam também. Uns, levavam o leite para a Companhia, outros arrastavam a lenha para entregar não sei bem onde. Os burros andavam em passo cadenciado, em fila, uns atrás dos outros. Refletiam uma aparente aceitação circunspecta. Assim, a vida se apresentava. Curiosa e intrigante para o menino eram umas cargas acondicionadas em tubos de taquara. Eram embaladas em folhas de bananeiras verdes. Muito mais tarde o menino aprendeu que assim transportavam os queijos preparados nas fazendas para vender na cidade.
***
O menino sempre
se aconchegava naqueles degraus de pedra na entrada de casa. Eram apenas três.
Mas tinham nomes. Eram o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Nas horas tristes,
sem amigos próximos, o menino conversava com as formigas. O menino ouvia conversas
entre as formigas que desapareciam e reapareciam nos vãos das pedras. Elas
trabalhavam rápida e assiduamente. Construíam um mundo subterrâneo,
desconhecido e invisível. Pensativo, comentou um dia, - “eu nunca vi uma
formiga sozinha!” Sentado no degrau do portão da casa o
menino sonhava seus sonhos.
Gordinho,
espremia-se toda manhã para caber numa das calças herdadas de seus irmãos mais
velhos. Aos domingos os sete meninos iam para a igreja. Neste dia, vestiam
aqueles conjuntos iguais. Todos iguaizinhos.
As camisas e as calças curtas eram compartilhadas por todos os irmãos.
Era assim até esgotarem-se. Mesmo a única irmã entrava no uniforme. O cabelo de
franjinha e a saia feita do mesmo tecido indicavam sua condição feminina.
O menino era o sexto, dos sete filhos da velha dama. Já nascera em plena crise. Disso, isto é, de crise ele não entendia. Mas percebia a sisudez dos adultos. D Memi, assim apelidaram a velha dama era uma alemã rígida, feia e muito mal humorada. Odiava aquela condição de mãe de sete meninos. Vivia a nostalgia de sua Frankemberg, da neve, do frio e do repolho fermentado com batata. Não fora fácil a vinda para o Brasil. Só um grande amor poderia justificar. Veio direto para a fazenda, situada naquelas profundezas verdes, entre matas e montanhas. Para chegar até lá, depois da estação do trem, um carro de boi chorava pelo caminho entre pedras, ladeiras enlameadas e curvas fechadas. Desde a vinda da Alemanha, a velha senhora, sempre amamentando algum menino, ruminava a saudade dos pais. Mas ninguém ouvia seu choro. Exceto os meninos, os moleques e os empregados. E estes nem eram considerados. Assim era. A tristeza implantou-se para sempre no rosto da velha dama.
Mesmo depois que todos se estabeleceram definitivamente na casa da cidade, às vezes, a crise fugia do controle. Aí então, a velha senhora trancava os meninos no galinheiro e tocava seu piano. Aquele era a parte mais reservada de seu mundo de recordações. Do lado, o banquinho onde descansava a perna esquerda, arroxeada pelas varizes. Um edredom suarento também significava certo aconchego alemão. Impunha um silêncio absoluto para os meninos e para as galinhas. Tanto assim que estas e outras histórias só foram compartilhadas por eles mesmos, pelos empregados e por amigos muito próximos que eventualmente acudiam em socorro dos meninos e das galinhas.
Mesmo depois que todos se estabeleceram definitivamente na casa da cidade, às vezes, a crise fugia do controle. Aí então, a velha senhora trancava os meninos no galinheiro e tocava seu piano. Aquele era a parte mais reservada de seu mundo de recordações. Do lado, o banquinho onde descansava a perna esquerda, arroxeada pelas varizes. Um edredom suarento também significava certo aconchego alemão. Impunha um silêncio absoluto para os meninos e para as galinhas. Tanto assim que estas e outras histórias só foram compartilhadas por eles mesmos, pelos empregados e por amigos muito próximos que eventualmente acudiam em socorro dos meninos e das galinhas.
***
O pai do
menino era o reverso da medalha. Médico, ele fora contratado para atender aos
cafeicultores que já não suportavam a carência de trabalhadores nas roças. Estabeleceu-se
com a família, naquela casa do portão azul, bem ao lado do casarão desde antes,
transformado em Santa Casa de Misericórdia. A iniciativa surgira quando a
mortandade de escravos levara a falência aos grandes fazendeiros que cultivavam
o café na região.
Naquele ano,
quando o menino colecionou esta e outras histórias, a influenza avassalava o
mundo e responsabilizou-se por inúmeras outras mortes. O velho médico sofria
pacientemente com seus pacientes. Ao final da luta, a peste levou também o
médico e o povo todo ficou órfão. Mas esta tragédia fica para depois.
Calmo, o
Doutor era muito calmo ou aparentemente calmo, não sei. Na falta da penicilina tratava
frustrações com cachaça. Gostava da pinga. E no meio daquele povo, todos o
amavam muito. Inúmeras foram as histórias contadas pelos que o conheceram. Mesmo
bêbado, acertava no diagnóstico e na receita. Assim, por exemplo, contou a
morte do Zé Ilhéu, o velho. Que os filhos do ilhéu vinham transportando-o numa
rede, para interna-lo na Santa Casa. O velho retorcia-se de dor no abdome. Na
altura da curva da Conceição encontraram o doutor que seguia a cavalo em
direção contrária. “Que foi com ele, Zezinho?” –“Intoxicação por manga,
Doutor!” O médico arrastou algumas palavras incompreensíveis, observou o doente
que resmungava na rede e diagnosticou: “Dê-lhe um golinho de cachaça!” Os
filhos do ilhéu calaram-se respeitosamente e seguiram em direção do hospital.
Na manhã seguinte, diante da constatação da morte do velho ilhéu o médico
indagou com uma ligeira indignação: “Mas vocês não seguiram a minha receita?” “Não,
Doutor, o senhor não estava em condições...” Neste momento o médico tomou um
vidro, colocou ali outra manga e juntou o restinho da pinga que ainda portava.
Os filhos do morto puderam observar calados uma reação química. A manga se
desfez até o caroço.
Assim me contaram
aqueles que o conheceram.
Dizia-se
ainda, que era um homem de várias paixões. Era visto altas horas da noite,
rondando pela rua de baixo, disseram que a procura de um amor proibido. Falavam
mesmo que havia um menino moreninho, daqueles que percorriam a cidade tocando
na Banda de Música. A semelhança evidenciava a paternidade. Mas isso era o que
diziam. A necessidade de atendimento médico aos pacientes da gripe cobria estas
artimanhas com um véu cinzento do interdito. Afora isso, o Doutor trouxera
consigo alguns hábitos adquiridos nos tempos de estudante no Rio de Janeiro.
Amava a música, letras e a política. Participava de quartetos e sextetos de
cordas e ainda semanalmente juntava o som do violoncelo aos acordes do piano de
sua mãe.
E quem
imagina que por aqueles rincões só havia homens tristes e ignorantes se
surpreenderia ao visitar a biblioteca pública municipal. Lá, no prédio de uma
antiga cadeia adaptado para abrigar a Biblioteca, os fantasmas de Dante,
Erasmus de Roterdã, Homero permanecem aprisionados em velhas prateleiras de
madeira pesada. Mais um pouco a esquerda de uma porta ainda de grades, coleções
encadernadas de jornais franceses continuam dormindo sob a poeira dos tempos.
Tudo devidamente rubricado com as iniciais do Doutor famoso.
***
Durante a hora do sol quente, a
cidade parecia morta de tanta tranquilidade. Suas ruas poeirentas expandiram-se
sob a forma de cruz. O tronco seguia paralelo ao rio. O braço direito da cruz
apontava para a ponte, para o comércio. Já o braço esquerdo indicava o caminho
da roça, dos pequenos sítios e a grande montanha negra. No cruzamento ficava a
praça das palmeiras e o grande templo. A cidade desenvolvera-se no fundo do
vale. Para chegar lá, vindo da capital, o trem remexia-se como minhoca,
espremido entre morros, pedras e pequenos rios. Só havia esta forma de se
chegar naquele lugar. Era o caminho do trem que corria paralelo ao rio. Por todo
lado era o espetáculo do mar de morros. Tudo era escondido naquele oco da
serra.
Esta
geografia pareceu marcar a formação do caráter de quem viveu por lá. Na
ausência de horizontes possíveis era fácil ver gente taciturna perambulando
pela rua. Juravam conversar com os anjos e santos no céu ou quem sabe, reservavam
seu lugar ao lado de Deus. Tudo apontava para o céu. Até mesmo os maus
pensamentos, palavras não expressas e ações executadas por aquele povo. Era
impossível até mesmo imaginar o que havia além daquele morro, porque depois
dele, haveria outro morro e mais outro, depois mais um até o infinito.
Na praça, as
palmeiras imperiais disputavam com as torres da Igreja o domínio das alturas.
Não havia ninguém que ao passar por ali, não se lembrasse das promessas do
batismo. Mas no tempo do frio nem as copas, nem as torres ficavam visíveis. No
inverno, a bruma e o frio reduziam ainda mais as perspectivas. A bruma invadia
tudo e as crianças davam rizadas ao tentar capturar as gotículas que dançavam
na porta das cozinhas. Com muito esforço, o sol só conseguia atingir aquela
grota por volta das dez horas e algumas vezes até mais tarde.
***
O que fora a
região? – um sertão proibido?
Para além da
cidade era a serra negra ou o sertão proibido. Negra, íngreme, perigosa,
ameaçadora, brilhava só quando aquecida pelo sol refletido na malacacheta. Por
séculos, a serra fora habitada por seres humanos depreciados e perigosos, por
presumidos assassinos refugiados e acobertados pela solidão de suas culpas e
desatinos.
O imaginário
popular fez nascer histórias de pedras que guardavam lembranças. Cabeças de burro
enterradas por lá, azaravam quem se arriscava ir além dos limites. Correntes que
um dia amarraram escravos arrastavam-se pelas noites numa eterna procura por suas
vítimas. Casas de pedra contavam suas experiências
fantásticas. Havia mesmo uma rocha chamada Testemunha Muda: Para guardar o
segredo do crime que presenciara, ela tomou a forma do caramujo e encerrou-se. Tornou-se
muda. Para sempre. Sugestivo é que no caso testemunhado, o assassinado é que
ficara sem a língua. Outras, como a talhada, ocultavam cenas da
vida e da violência.
Isso
encantava crianças e adultos especialmente o menino do chapéu e seus amigos.
***
Na semana santa daquele ano
bissexto o moleque Narciso parou diante do portão do menino. As tropas chegavam
à cidade sempre tocadas por um moleque. Narciso era magrinho, dentuço e vivia
gargalhando. Resolveu descansar um pouco da caminhada pesada. O sol estava
forte e o moleque arriscou pedir água pra beber. O menino correu para a cozinha
e voltou com uma latinha de água fresca. O moleque puxou uma conversa. Contou
do mamoeiro cheio de araras, da chuvarada da noite anterior, contou de um tudo
que se passara na fazenda. O menino ouviu muito atento e encantou-se. Desde
então, todos os dias, aquele moleque, o Narciso trazia uma novidade. Um dia,
além da novidade, esqueceu ou deixou de presente o chapéu surrado, sua riqueza compartilhável.
Era o sinal do pacto.
Daquele dia em diante, o chapéu
e o menino se juntaram aos degraus aconchegantes e as formigas trabalhadeiras.
Todos se uniam a espera do moleque Narciso e suas historias da roça. E tinha
cada história! Todas eram guardadas no fundo da memória, protegida pelo chapéu
e quando o Narciso seguia seu caminho atrás da fila dos burros circunspectos e
tristes, as formigas trabalhavam incessantemente e o menino revisava suas
lembranças.
***
E foi um
fragmento destas memórias que certo dia saltou para fora da proteção e revelou-se
ao menino do chapéu e ao Narciso, o moleque.
Era um dia de eleição e os republicanos
precisavam ganhar mais um pleito. Era assim que era naquele tempo e naquele
fundo de vale. Dentro daquela casa uma
lagartixa e um mosquito continuavam uma infindável perseguição mortal. Aos
olhos das crianças, em meio às pinturas que cobriam as paredes, o mobiliário
escuro e os segredos imaginados nas folhas dos livros e jornais antigos, a
realidade se misturava e a imaginação crescia.
A eleição parecia
provocar uma movimentação extra. As cinco janelas permaneceram fechadas.
Escondiam partituras antigas, o piano e o violoncelo, os livros e os jornais franceses. Escondiam os móveis pesados e a pintura na parede, inclusive a
lagartixa e o mosquito. Escondiam mais o que?
Imperava um silêncio.
Um velho
amigo e correligionário político do médico deveria ser o sucessor. Era assim
que se cumpriam as leis. Ele viera do Mato Grosso ainda jovem. Fora selecionado
para o primeiro grupo de futuros advogados. Formados, deveriam voltar,
civilizar e tornar verde-amarelo os bandos revolucionários daqueles cafundós mato-grossenses
na fronteira. Para isso foram selecionados e enviados para estudar na capital.
Mas Esperidião nunca voltou. Caiu de amores pela Aída e trocou a planura do
pantanal pelas corcundas das montanhas de Minas. Nunca foi perdoado por seus
conterrâneos.
No ano em que o menino do chapéu conversava com as formigas e cascalhos, o amigo Esperidião já era um velho. Velho demais para aguentar uma campanha eleitoral. Mesmo assim, os fatos daquele dia ocorreram normalmente e o pantaneiro ganhou a eleição na pequena cidade de Minas. Tanto que hoje ele empresta seu nome a rua principal da cidade.
Fragmentos
dessa história perderam-se entre os cascalhos recolhidos no chapéu do moleque
Narciso emprestado ao menino. O que contam,
é que terminado o processo eleitoral não houve festa. Não houve barulho de
comemorações. Nem cavalaria dos fazendeiros correndo pela rua. Os sinos da
Matriz replicavam tristes, os sinais. E
o povo reconheceu de longe e silenciou também.
A noite já se
anunciava por detrás da serra negra, quando o menino junto com o moleque
Narciso foi arrastado rapidamente para o galinheiro. Musgos e líquens por cima
dos muros denunciavam a solidão da hora. Uma luz esverdeada pouco iluminava a
vegetação molhada por onde aqueles homens passaram carregando um esquife. Os
degraus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo viram passar sobre eles, uma pequena
multidão apressada. A nave que servia de capela mortuária se abriu e acolheu o morto
ilustre. Pela rua pedregosa e lamacenta até o cemitério, o médico chorou a
morte do amigo Esperidião.
Poucos foram os que souberam dos detalhes
desta história. Tudo acontecera no dia anterior ao da eleição. Morto, o amigo-candidato,
o Doutor não duvidou em conserva-lo em formol, na banheira em sua própria
casa. Nem Aída soube. Já perdera o amigo
e era inadmissível perder também a eleição. E o prestígio entre os políticos do
Partido Republicano Mineiro?
Assim era; assim
foi.
***
A
lagartixa ainda hoje ameaça o mosquito nas paredes da casa velha. O chapéu
recolheu o segredo e contou ao menino e ao moleque Narciso. Selou-se uma
amizade que durou por toda a vida e essa história se repetiu alguns anos mais
tarde muito longe dali.
Seria uma farsa?
Uma primeira
versão desta história foi
publicada no jornal AQUI de Rio Preto-MG
Eita.... Bem mineira esta estória.
ResponderExcluirMuito boa e modorrenta.
Gostei imenso.
Grande beijo.
Olha ai os elefantes navegando nas suas letras.
ResponderExcluirelmar
Ola.... qdo tiver mais avise
ResponderExcluirAdorei.
Essas histórias dentro da gente... fico aqui pensando há quanto tempo esse menino está vociferando dentro de você, pedindo para falar.
ResponderExcluirHistória do o(O)utro quando não contada, se converte em história nossa, e vivida. A escrita tem o poder quase mágico de dar vida (real?) ao outro em nós. Por isso a importância das várias formas do falar: verbalizar, escrever, dançar, contar histórias... mas também fazer sintoma, ficar doente... Melhor falar, escrever... Falar para livrar-se de doença é igual derreter manga com pinga. Você abriu várias avenidas não percoridas nessa história e gerou curiosidade de percorrê-las todas. Continue, faz favor! (hehe). O suspense você soube criar. Parabéns pelo estilo. Célio
Texto de Maria Ines Portugal , primoroso,delicado ,insinuante além de bem articulado. As personas ficcionais do médico, do menino parecem duplos do chapéu e de Narciso. Signos que fortalecem a escrita e tornam uma gostosura saborear o texto. Muito grata, MIP. Sua admiradora,
ResponderExcluirMarília Beatriz
ResponderExcluircontinue excelente escriba com muita imaginaçãobjos esm
Poético com leitura agradável... parabéns! veja se consegue colocar a opção "seguidores" para adicionar o teu blog na minha lista. Vaaaaaaaaaaaleu.
ResponderExcluirOi amiga infelizmente o primeiro comentário se foi
ResponderExcluirEspero que este chegue
É uma crônica doce, poética e bem mineira... Melhor só Guimarães Rosa...
Betina